historial
(Des)tecer é um projecto de investigação artística de Luz da Camara desde 2005. Trata-se de desenvolver performaticamente o conceito de ‘atmosfera’. A Atmosfera não pertence nem ao Sujeito (EU), nem ao Objecto, mas é uma co-presença aquém da cisão Sujeito / Objecto. Só mais tarde é que as atmosferas se diferenciam numa polaridade Eu/objecto. Tal como o jogo (que noutros idiomas está tão ligado à performance play, jouer, spielen), as atmosferas são também qualquer coisa mediadora, conciliadora, é um Entre, entre Sujeito e Objecto, entre determinar e receber, entre fazer e permitir. Ensinar a percepcionar atmosferas quer dizer abrir-se emocionalmente. As atmosferas, se bem que difíceis de descrever, são facilmente adjectiváveis: serena, caseira, estranha, estimulante, sagrada, melancólica, inspiradora, deprimente, agradável, comovedora, convidativa, erótica, sublime. E podem, ainda, ser experienciadas como emoções, arrebatamentos, pulsações, lágrimas e sorrisos, que se constituem como evidências formais duma relação entre os sujeitos e as suas envolvências. Experiências que todos temos perante uma paisagem, a boa ou má energia que percepcionamos quando entramos numa sala mesmo antes de nos apercebermos como e quem está, etc. As características das atmosferas permitem um trabalho transversal, quer de áreas artísticas, quer socialmente.

Diversas são também as comunidades, que sensibilizadas através da aplicação prática de técnicas artísticas transdisciplinares, tem permitido o acesso à expressão de opiniões, experiências e sentimentos dos participantes. Os resultados obtidos constituem-se como valiosos contributos para a criação colectiva em performance, destacando a valorização do gesto e da palavra do dia-a-dia relacionados com práticas laborais e hábitos de vida ancorados numa cultura paralela, por oposição à cultura artística. Uma vez inseridos num processo de construção dramatúrgica, o que até aqui era percebido como vivência automatizada, adquire novas dimensões, tanto artísticas como terapêuticas, potenciando o cruzamento de saberes e experiências, e promovendo o intercâmbio geracional, social e cultural. Trata-se de um trabalho exploratório dos sentidos, da sua percepção e expressão, podendo ser usufruído por qualquer pessoa independentemente do seu estatuto social, idade ou habilitação intelectual.

O projeto reúne áreas artísticas tão diversas como a performance, as artes plásticas, a música, a literatura e o vídeo para abordar esta questão das atmosferas do quotidiano, do seu encanto, da sua espectacularidade. Aquilo que queremos, e temos vindo a experimentar, prende-se com questões colocadas por pensadores da contemporaneidade, tais como Deleuze, Guattari, Negri, Agamben, Foucault, Böhme entre outros. O nosso objectivo é ir ensaiando essa corrente de pensamento, testando-a em laboratório e em performance. Abrir a possibilidade de, por exemplo, ser possível que a reflexão acompanhe a acção, abrir outras possibilidades à comunicação que não a narrativa, alargar a capacidade dos discursos, apanharmo-nos no tal momento antes da cisão entre Sujeito e Objecto, e incluir empaticamente o espectador nessa experiência. "Quanto mais o dia avançava, mais frequentes se tornavam para Levine os momentos de esquecimento em que a gadanha parecia arrastar consigo um corpo que, contudo não perdera consciência de si mesmo, e executar como por encanto o labor mais regular." Escreve Tolstoi em Ana Karenina.



A criação da performance, tal como as teias, vai-se desenrolando numa espiral. E é numa espiral, que iremos tecer a teia no espírito da sopa de pedra: formando padrões conforme os ingredientes que vamos juntando, um som, uma imagem, um movimento, uma história...

E falando de espaço, neste projecto, aproveitando a presença de vários artistas ligados á instalação, e as aptidões naturais dos participantes, vamos explorar em conjunto a instalação, a construção. Partimos dos materiais existentes nas instituições para os trabalhos correntes, os de uso quotidiano, como o papel higiénico ou os encontrados na natureza ou considerados desperdícios, com o objectivo de ir construindo em conjunto espaços habitáveis, que podem ir do figurino, aos adereços ao próprio cenário. Podem e devem existir enquanto instalação independente da performance. Este trabalho, porque muda a escala mas não a aptidão, amplia o movimento e foca a atenção, ao mesmo tempo que produz espaços onde os participantes se revêem. Restam as perguntas, como se sente o Outro? Qual a capacidade que tenho de mudar para incluir?

Interessa-nos também um cheiro, um sabor. Diríamos que os ingredientes saem de culturas tradicionais mas serão servidos em baixelas contemporâneas, que mais não são que revelar ou permitir a espectacularidade do quotidiano.

E baseados nestas premissas e na inspiração do trabalho em continuidade com os participantes, que avançamos para a criação da(s) performances(s), passo a passo, erro a erro, aprendendo uns com os outros nas sessões e nas apresentações com o público.

Acreditamos que inovação e experimentação, leia-se investigação, implica que os objectivos de um projecto são hipóteses que podem ser sedimentadas ou contrariadas pelo próprio processo de trabalho e que o espectáculo não pode ser a mera execução de uma ideia. Implícito está ainda a assimilação positiva do ''erro''.

A 'espetacularidade do quotidiano' traz ao consciente um acervo de memórias que potencialmente será ritualizado no sentido performático, procedendo-se assim à recolha de registos escritos, desenhados, construídos, filmados ou gravados, utensílios indispensáveis à construção dramatúrgica final. O tratamento posterior deste espólio será divulgado em diversos formatos, desde a exposição/instalação ao DVD, passando pela constituição de um arquivo digital que pode ser uma mais valia para a continuidade do trabalho.
Chega-se com a perspectiva de que vamos ajudar e é-se ajudado.
É esta a minha experiência no trabalho com a diferença seja ela étnica, etária, mental ou física, social, ou qualquer outra.

O trabalho na prisão ajudou-me muito a perceber que é importante partir das perspectivas deles (entendidos como os outros a quem nos dirigimos) e propor um trabalho que seja transversal cultural, etário e social. Assim, comecei a pesquisar o brincar à séria. Vinha esta proposta de um questão antiga. Porque é que em português não se usava a palavra jogar para o espectáculo, à imagem do inglês play do francês jouer do alemão spielen?

Na prisão, era fascinante, depois de ultrapassada a barreira de isso é para crianças, ver a forma como nos entregávamos aos jogos e os íamos adaptando a outros contextos. Tenho utilizado esta estratégia e tem sido muito gratificante. Entre o jogo e os interesses deles e a minha pesquisa, consigo ir construindo exercícios muito flexíveis e espectáculos muito interessantes que não passam pela repetição exaustiva, mas sim pelo fixar algumas regras daquele jogo que inventamos juntos. A isto tudo junto o quotidiano comum a qualquer pessoa: um banho, comida, a casa, o quarto ou a cela, a cama, andar, etc. e a comunicação do grupo começa a passar por outros canais que ainda não consigo definir assim num texto, mas que acontece...
Testemunho pessoal de Luz da Camara
Instalando Parkours em materiais quotidianos e bastante frágeis que obrigava a um cuidado da parte dos participantes quer na montagem, quer no percorrer da instalação.
Depois de uma mudança de residência em 2010 para o Alentejo (mais concretamente Evoramonte) continuei a minha pesquisa virando-me para esta nova envolvente: uma atmosfera rural e uma atmosfera de pequena cidade ligada de alguma forma ao mundo rural. Por um lado, interessava-me continuar a trabalhar com uma população fora da área artística, por outro, as experiências anteriores mostravam que este trabalho me trazia muita inspiração.
O Pedro, cliente da Crinabel, inspirou toda a parte performática de “ao fim, ao cabo e ao resto” http://eaoresto.blogspot.com/
Por coincidência a Academia Sénior em Estremoz procurava alguém na área do teatro e comecei um trabalho com 11 Senhoras de idades compreendidas entre os 50 e 80 anos que com grata surpresa minha, se veio a tornar um espaço privilegiado de pesquisa, já que generosamente e entusiasticamente aderiram às várias questões que lhes ia colocando, e fomos apresentando as várias fases do trabalho publicamente sob o nome: “AMOR. Fantasias e Enleios” em Estremoz, Mourão, Redondo, Évora e uma animação em Bencatel num Lar da Misericórdia.

De seguida, apresentámos integrando vários artistas de áreas diferentes, como MUMTAZ (artes plásticas), Cevas (música e DJ), Sergio Ramos (Luzes), as cineastas Marta Pessoa e Rita Palma, a performance “tOCADA... no estendal” um convite meu em que performei com esse generoso grupo de mulheres de Estremoz.
"á espera que a roupa seque..." aparece como resposta ao desafio de interpretar esta performance numa atmosfera urbana e localizada na rua (Festival Pedras), sem os meios e a protecção oferecidos pelas salas de espectáculo extremamente bem equipadas de Estremoz e sobretudo em Redondo.
No Lar da Misericordia de Evoramonte criei um primeiro capitulo de uma radionovela exclusivamente a partir de material reunido em algumas sessões de trabalho. Clique AQUI para ouvir.
Seguiu-se “Deixei o enxoval nas paredes” que se inspirou numa técnica que se usava aqui no Alentejo de remendar as paredes com lençóis velhos. Uma senhora aqui de Evoramonte do Lar da Misericórdia, quando lhe perguntei se ela usava essa técnica, respondeu-me: “Ai, filha, quando vim para aqui já só tinha uma muda. Deixei o enxoval nas paredes.”

Fizemos uma residência artística no Alandroal onde apresentámos uma primeira versão em Março de 2014, que incluía artistas locais.
A performance foi apresentada em Estremoz no Teatro Bernardim Ribeiro e mais tarde em Sousel numa adaptação ao espaço.
https://www.facebook.com/Deixei-o-enxoval-nas-paredes-634649563290126
O texto que se segue é retirado da folha de sala:

Eu? eu deixei o enxoval nas paredes! exclamou uma mulher quando explicava como tapar buracos e caliços com lençóis velhos embebidos em cal.
E tornou-se o mote desta nova criação, a 3ª que fazemos juntos.
"...deixei o enxoval nas paredes!" tem a fragilidade do que não se sabe se vai vingar, que ainda só espreita, um lume que ainda não pegou, as nuvens que talvez não chovam, a onda de um mar imenso que talvez não rebente, uma pergunta que ainda não se fez.
Personagens, textos, histórias, emergem da atmosfera que se cria no acarinhar da planta, espevitar do lume, esperar a chuva, surfar a onda, fazer a pergunta...
E lá dizia o grande filósofo Nietzsche (lido na estação do metro Parque): É do grande caos interior que se pare a estrela que baila! Boa Viagem!
"Lar, doce lar. Direito ao tédio!"

https://www.facebook.com/Lar-doce-lar-113707962307964

Participação na residência e Festival Atalaia Artes Performativas 2015 em Ourique e primeira colaboração de Luz da Camara com Carlos Lima.

Método deste trabalho: montagem! Não tenho nada a dizer. Só a mostrar. Não vou roubar nada de valor, nem me vou apropriar de nenhuma formulação transcendental. Mas os farrapos, os detritos, esses não os quero inventariar, mas deixá-los vir da única maneira possível: usando-os. (Das Passagen Werk).

As palavras são de Walter Benjamin , mas podiam muito bem ser nossas.

Os farrapos, os detritos que usamos, que vão de vídeos, a sons, a um espólio de quem mudou de 200m2 para um T1, entre tantos outros, encantaram-nos!

E lá nos fomos instalando no Mercado Municipal de Ourique, que é agora o nosso Lar, doce lar.

Cientes que também esta instalação tem a fragilidade de uma planta que não se sabe se vai vingar, um lume que ainda não pegou, as nuvens que talvez não chovam, a onda de um mar imenso que talvez não rebente, uma pergunta que ainda não se fez, ousamos na mesma convidar a que passem por lá, levem uma curiosidade aguçada para ouvir um conto, que quem conta um conto, acrescenta um ponto; de certeza para beber um chá e falar de mezinhas; cantarolar um pouco; ver um filme; dar um passeio sonoro (traga o seu smartphone ou use os nossos arcaicos mp3); apreciar os tesouros que encontrámos: comer um cozido feito no espirito da sopa da pedra; conversar com os artistas do Festival e sobretudo instalar-se e dar direito ao tédio.

Quem sabe não descobre onde está o gato?

Um abraço dos habitantes do mercado.
"SOLO"

Uma performance de Luz da Camara & Carlos Lima & Bruno de Azevedo, Cristina Vilhena, Margarida Agostinho, São Neves, Sérgio Ramos, Sofia Neuparth & Bernardo Bagulho & Adélia Alves, André Fortio, Berta Ehrlich, Bia Ramos, Mina Trindade, Olga Falcato & a.m.o.r.
Solo, a lembrar o solo terra, mas também o ato de estar só, é uma performance em criação que pretende trazer à cena as memórias de uma viajante que correu mundo e que nos últimos 11 anos escolheu embrenhar-se por terras do Alentejo.

A metodologia deste trabalho cruza Santo Agostinho com Walter Benjamin. De Santo Agostinho queremos praticar o Palácio da Memória [1], (…) e dirijo-me para as planícies e os vastos palácios da memória, onde estão tesouros de inumeráveis imagens veiculadas por toda a espécie de coisas que se sentiram. (…). Quando aí estou, peço que me seja apresentado aquilo que quero: umas coisas surgem imediatamente; outras são procuradas durante mais tempo e são arrancadas dos mais secretos receptáculos; outras, ainda, precipitam-se em tropel e, quando uma é pedida e procurada, elas saltam para o meio como que dizendo: ‘Será que somos nós?’ E enquanto Santo Agostinho as afasta, eu quero que venham assim em tropel as vezes e de outras que esperem que eu lhes abra a porta, que pode ser imagem ou som, mas também cheiro, sabor ou esse enorme sentido que é o tato. E é aqui que cruzamos com Walter Benjamin que já vimos a praticar há uns tempos: Método deste trabalho: montagem (...). Não tenho nada a dizer. Só a mostrar. Não vou roubar nada de valor, nem me vou apropriar de nenhuma formulação transcendental. Mas os farrapos, os detritos, esses não os quero inventariar, mas deixá-los vir da única maneira possível: usando-os. [2]

Este bloco de memórias entre 2010 e 2021contem grosso modo 4 performances criadas integralmente no Alentejo; 12 participações no festival urbano Pedras com 5 instalações sonoras, 4 instalações de objectos, 3 exposições de desenhos, 4 performances; 2 rádios novelas, uma no projecto TOCA realizada na mouraria mas com participação especial de vizinhos de Evoramonte, e outra na Santa Casa da Misericórdia de Evoramonte; participação como residente no festival ATALAIA Artes Perfomativas 2015 que resultou numa instalação site specific no mercado; uma ida a Nova Iorque com uma peça holandesa, e uma viagem ao Malawi; e ainda, uma pandemia, entre tantas outras coisas impossíveis de mencionar.

Deste modo, e num 1º momento recolhi fotos, vídeos, sons, desenhos, objectos, escritos e vou registando livremente sem hierarquizar essa enorme base de dados. Promovo ainda encontros com pessoas e espaços envolvidos no decorrer destes 11 anos e que não podem deixar de serem chamados.

Num 2º momento comecei a praticar a fisicalização de memórias, usando aleatoriamente um item identificado na fase anterior, como porta de acesso a um fluxo de dinâmicas muito diversas, e onde pratico deixar-me levar e trazer para um plano real esse fluxo, isto é tornar sensível o invisível. Por exemplo, uns simples chinelos de enfiar o dedo, remetem-me para o primeiro objecto meu da casa que agora chamo lar e atrás desta ideia de casa que agora é lar vem Ourique e o mercado, mas também Fevereiro nas ruas da Mouraria, e as minhas queridas actrizes da Academia Sénior a criarem as suas casas e a conversarem como mães/filhas na performance “deixei o enxoval nas paredes”. E conforme se vai instalando esta atmosfera que afinal começou nuns simples chinelos, sinto o movimento a nascer que me pede que dance. Rio contente e algo me impele a registar este percurso tão físico de uma memória. E lá aparece o desenho, o texto, o som. Temos a hipótese de construir um fio. Para esta prática muito contribuem as pesquisas que venho a efectuar na produção de atmosferas [3], e que são a base das performances e instalações que tenho feito. Conto com o precioso acompanhamento de Sofia Neuparth na criação, Margarida Agostinho nos textos/argumentos/ roteiros, e Cristina Vilhena no apoio à produção e itinerância, pessoas com quem venho investigando há mais de 2 décadas no cem – centro em movimento.

Num 3º momento e com a continuação da colaboração preciosa de Carlos Lima na criação de vídeos e atmosferas sonoras, assim como de São Neves na criação da atmosfera plástica, Bruno de Azevedo na Banda Sonora seleccionamos os fios que servirão para construir uma teia a cada performance. Já o fizemos em Estremoz, em Redondo, no CC Malaposta, Odivelas, no Alandroal, nas Noites na Nora em Serpa e no Teatro do Bairro em Lisboa para mencionar só alguns. O festival Pedras (Lisboa) de certeza. E tantos quantos os espaços que nos queiram receber. A cada performance, mantendo a imagem da teia, encontraremos os pontos de apoio específicos para os fios criados no espaço onde trabalhamos o que altera sensivelmente toda a performance, sem perder a qualidade de cada fio. Também como os fios, a certeza de Luz da Camara em presença, mas convidando sempre a possibilidade de ser atravessada em cena por alguns habitantes das memórias, quer presencialmente quer digitalmente.
[1] Confissões, Livro X, Capitúlo 8.
[2] Walter Benjamin, das Passagen-Werk, trad . Luz da Camara.
[3] Entendidas como esse momento exactamente antes da cisão sujeito/objecto. Se quisermos trata-se de uma pré-percepção.
início
sobre
pessoas
historial